Filha, o meu marido e o meu Pai já chegaram?
Não Avó... o avô e o bisavô já morreram há tantos anos...
Filha! O meu marido, o Zé?! Ele saiu com o meu Pai!
Não, Avó... o avô e o bisavô... já morreram...
Filha! o meu marido e o meu Pai já chegaram?
Não avó, eles...
A minha avó tinha 94 anos quando tivemos esta conversa...
Os sintomas da demência que a consumiu nos últimos meses de vida eram muito fortes. Perguntava por familiares e amigos mortos há muito. E fazia-o repetidamente. Não é exagero dizer que podia perguntar 15, 20 vezes por alguém, sempre preocupada, cada vez mais nervosa.
Dei-me conta, na vigésima pergunta, que lhe respondia quase sempre com um NÃO! Não, avó. Não, Avó! Já lhe disse que várias vezes...
“Se eu soubesse a resposta não perguntava outra vez!”
Se a avó soubesse... Se a avó soubesse a resposta não perguntava outra vez...
E de repente eu soube a resposta!
Entendi: no mundo da minha avó, o meu avô, o meu bisavô estavam vivos e a minha avó não sabia onde andavam.
O que a mim parecia estranho, impossível, até bizarro, para Ela era a absoluta realidade.
Um dia aprendi que há 3 formas de ver o mundo.
A minha, a do outro, e a de quem está de fora. i.e. a 1ª, a 2ª e a 3ª posição de perceber o mundo, ou posição perceptual.
Uma posição perceptual é uma forma de dar atenção ao mundo.
Na 1ª posição, eu sou eu. Olho para o mundo e vejo-o segundo a minha experiencia, a minha memoria, as minhas sensações do que é bom e do que é mau.
Na minha história, usando a 1ª posição perceptual eu sabia que o meu avô morreu há quase vinte anos, e o meu bisavô há uns 40. Não fazia sentido nenhum perguntar por eles, por isso a cada pergunta eu respondia Não.
Mas a minha avó não tinha naquela altura a mesma visão do mundo do que eu. Aliás, ninguém tem exactamente a mesma visão do mundo que outra pessoa.
Na 2ª posição, eu sou o outro, vejo o mundo como ele vê, com a sua experiencia, a sua memoria e as suas sensações. Na 2ª posição perceptual, eu desenvolvo a minha empatia pelo mundo do outro, pelo seu lugar.
Hum... isto é muito bonito mas... como posso eu saber o que o outro sente?
A chave está em copiar o melhor que podemos o seu olhar.
Vou explicar melhor o que quero dizer com “copiar o seu olhar”.
Começo por observar a cara, o corpo e a postura do outro. Copio apenas internamente, usando a minha imaginação.
A minha avó estava assim, torcia as mãos, levava os olhos de lado a lado, como que à procura de algo. Apertava o lenço, zangada.
Depois, fecho os olhos e volto a abrir, e vejo o mundo como se fosse ele. E de repente, puff, estou na 2ª posição!
A 3ª posição observa a situação de ambas as partes de forma independente, sem envolvimento.
Também tenho um truque para esta! Imagino que sou uma mosca e que estou no canto da sala, lá no alto, a ver o que se passa aqui. Descrevo a rapariga que vejo (que sou eu) e quem mais está com ela. Observo mais uma vez as suas caras, os corpos, as posturas. Para onde olham, no que tocam, que tom de voz usam...
Nessa tarde eu via uma senhora muito velhinha, agitada, preocupada, um pouco zangada até. E uma rapariga nova que repetia Não, Não, Não, por vezes com alguma impaciência.
Um dia aprendi que há estas 3 formas de ver o mundo, e foi naquela tarde que entendi o que queriam dizer.
Filha, o Zé e o avô José Homem?
Estão de viagem minha querida, ligaram há pouco, só voltam tarde...
Ah que bom!
Não foi uma mentira que eu lhe disse. No mundo da minha avó era possível ser assim. E ela não perguntou mais. Nessa noite comeu bem, dormiu descansada, e até ao dia em que o coração dela parou não voltei a dizer “Não avó”, disse-lhe que sim a quase tudo, e vi como isso a fez feliz.
E vocês, já experimentaram o lugar do outro?
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